Texto do catálogo da exposição
"Pintura: da matéria à representação"
(Fundação Vera Chaves Barcellos / 2011)
Mário Röhnelt | 2011
"imersão noturna #068 (71 horas)", 2009 - 37x61cm (acrílica sobre chapa de PVC)

Imersão noturna #068 de Ricardo Mello é uma pequena pintura fugidia. Ela nos escapa do discurso naturalista, à nitidez visual, à compreensão cognoscitiva. Ela é um quase capturado entre uma imagem que foi e uma que se tornará. Acrescente-se a esse estado de evanescência que ela também é incompreensível tecnicamente. É impossível identificar as marcas de pincel ou de qualquer outro instrumento com o qual tenha sido feita. Ela é uma superfície homogênea, lisa e absolutamente opaca em toda a sua pequena extensão. Sob o escrutínio de uma lente, o que se vê, com bastante dificuldade, são pontos minúsculos, quase microscópicos, e manchas de cores muito tênues, sem bordas definidas; tudo parece emanar de dentro da superfície branca. Na verdade, cores e superfície pertencem uma à outra, o que anula a noção de suporte. Todas as "pinceladas" coloridas aplicadas pelo artista integraram-se à superfície, desaparecendo como materialidade. No entanto, essa imagem desfocada narrativa e materialmente é, ainda assim, alguma coisa de palpável. Percebe-se certa organização que a denuncia. Ela é perpassada por uma ordenação de faixas horizontais sutis e muito claras, às vezes amareladas ou pardas, de limites indefinidos. Onde ocorre uma densificação de cores se pode perceber outro padrão - vertical, regular - de alinhamentos levemente mais escuros, como uma retícula ordenada. É quando a imagem expõe-nos, a muito custo, sua origem no universo da mídia eletrônica. A história das imagens está impregnada dessa relação com a tecnologia. A natureza mesma das imagens é técnica. As imagens são constituídas tecnicamente. Na história, elas constroem-se a partir da técnica artesanal, indo até a técnica mecânica. Socialmente, ao circularem pelos meios, essa constituição técnica desaparece e, ao desaparecer, o poder de convencimento das imagens instaura-se. No entanto, qualquer imagem, a partir de certo grau de ampliação, expõe a sua natureza. E esta é uma organização material, sejam pinceladas, pontos de retícula, pixels coloridos de luz ou o que for.

O que Ricardo Mello parece fazer é isolar um fotograma - instante - de uma ordem de fotogramas que se sucedem para conformar uma experiência visual no tempo - uma cena de filme - e submetê-lo a uma ampliação tal que este fotograma seja "obrigado" a revelar-se em sua constituição. Nessa operação toda a narrativa a que pertence o fotograma perde-se, sobrando apenas a ordem de diminutas manchas que constituem a imagem.

Desde a modernidade, os artistas debruçam-se sobre essa segunda natureza, a das imagens produzidas e reproduzidas técnica e industrialmente, confirmando o quanto elas participam de nosso cenário existencial. Na arte, isso se apresenta como a imagem, sendo tema para esta. É a arte apontando para o fato de que não mais a natureza é o cenário de nossas ações. Mas nossas ações no mundo real se dão num cenário de imagens que são projeções midiatizadas. As imagens são nossas orientações. A ação crítica da contemporaneidade aponta para esse fato.

Daí que há uma interessante ambivalência nas operações de Ricardo Mello sobre as imagens, e que podemos conceituar como crítica. Sua obra reconhece claramente o poder mediador delas e ele a elas se submete ao acolhê-las como temática. As escolhas do artista são indicadores desse convívio assim como o convívio intensivo com a fotografia impressa o foi para gerações anteriores. Mas Ricardo Mello, assim como se submete às imagens, abrindo mão do seu poder de sujeito, também as desconstrói e reassume seu status de sujeito.

A desconstrução começa pela descontextualização dos fotogramas de suas sequências originais, daí que eles perdem o seu discurso. A desconstrução segue por complexo reprocessamento técnico que as transforma em pinturas. Ao deslocá-las para outro nível poético, essas imagens agora são uma nova expressão, difusas como um sonho, como memória desfocada de sua própria origem nas quais os observadores podem projetar as suas próprias. Imersão noturna #068 realiza, então, o percurso entre dois espaços, o da tradição da pintura e o do mundo midiático, também entre dois tempos - o histórico estático e o contemporâneo fugaz -, elevando a patamar de discurso crítico o reprocessamento de projeções mediadoras.