Interferências entre Transposições
Helene Sacco | 2005

Em um mundo que se organiza cada vez mais em sintonia com a difusão e produção de imagens e informações, as tecnologias da imagem acabam por definir toda uma realidade coletiva. Ao mergulharmos nesse novo mundo podemos perceber realidades e superfícies formadas pelo desenvolvimento da imagerie virtual e todas as influências sobre a industrialização da visão, a instauração de um verdadeiro mercado da percepção, baseado em nossa dependência e passividade diante de tudo que atualmente se lança ao visível.

Talvez o maior desafio lançado a um artista hoje, seja quebrar o fluxo contínuo e passivo do olhar, conseguir dar sentido a algo num mundo onde tudo é descartável, banal ou clichê. Conseguir, através de imersões, desbravar esse imenso labirinto e conhece-lo intimamente, talvez assim ele possa trazer a luz uma nova imagem, ou melhor, uma nova ideia, uma nova concepção estética de imagem. Olhar para esse mundo, entrar nesse labirinto é fundamental, é preciso existir enquanto parte daquele mundo, enquanto mergulhado no mundo, é preciso estar imerso neste meio.

O olhar do artista contemporâneo não é mais panorâmico, não temos mais a oportunidade de ver a cidade de longe, estamos mergulhados e fazemos parte de todas as experiências, diretas ou indiretas que o mundo contemporâneo nos reserva. Essas experiências nos revelam rotinas um tanto curiosas, tão impregnadas em nossas vidas que nem mesmo as percebemos. A TV constantemente ligada dentro de casa, arquivos fotográficos e videográficos que acumulamos constantemente do mundo, dos seres e das coisas, além de câmeras de vídeo nos monitorando nas ruas, nos lugares e em casa. E principalmente, um vício sem precedentes em nossa história, que é o hábito de locar imagens, as vídeo-locadoras. O prazer no ver, uma espécie de voyeurismo legalizado é o ponto central deste hábito, ter uma experiência através de imagens e histórias inusitadas, desconhecidas, selecionadas em meio a tantas outras, expostas em prateleiras como um produto de consumo.

Estando imerso na visualidade contemporânea, desbravando esse labirinto, que Ricardo Mello sai em busca de uma imagem que rompa com a transparência, e ao mesmo tempo, com a qualidade quase que volátil das imagens tecnológicas, propondo a criação de uma opacidade - um ruído através de suas transposições.

Em meio a esse limbo e escuridão, registrando fragmentos dessa experiência em contato com o que ele chama de "filme-excesso", encontra imagens que transpõe para pintura, preservando seu referente original midiático. Do vídeo para a fotografia em slide, da fotografia em slide para a pintura. Percorrendo o caminho contrário da história da tecnologia, mas se valendo dela.

O registro fotográfico testemunha o evento, o encontro do artista em meio a sua experiência com essas imagens, apropriando-se de cenas de "filme-excesso". No slide a imagem vira luz novamente, mas já não possui a fluidez constante da imagem videográfica. E com ela já projetada sobre a tela fria de metal, inicia o processo de revitalização da imagem através da pintura. Utilizando-se de uma técnica pictórica particular, que decorre do hiper-realismo, explicita que seu interesse não é somente a imagem de origem, tão pouco apenas seu resultado final, mas suas transposições de meios. Deixando então como fio condutor as transformações e interferências criadas em cada etapa de representação do "real". Construindo uma pintura que tem como foco principal não seu tema, cores, formas, mas algo que é próprio do meio da pintura: o tangível e a desaceleração.

Essas transposições implicam também em uma alteração dos tempos de fruição: imagem fluxo (vídeo), imagem instante (fotografia), imagem tempo (pintura), ou seja, uma imagem com tempo aberto. O tempo na pintura está soterrado em pinceladas, cores, formas, etc, e só é móvel enquanto ela é contemplada, e ainda assim depende da intersubjetividade de leitura criada entre a obra e quem a observa. É um tempo elástico, mas que é ampliado somente no olhar de quem a contempla. Comparada às outras, a pintura é o lugar da imobilidade.

Na pintura a imagem é fixada - não em uma película sensível - mas na rigidez da chapa de metal. Pintada em camadas sucessivas, acúmulos de tempos que conferem a essa imagem não algo dinâmico, fugaz, mas a visualidade condensada em um novo corpo, uma nova realidade, uma nova materialidade da imagem.